27.7.04

Em Deus Confiámos - O Vendedor

"Corre bicho, foge-te a presa que amanhã te caçará."
.                                      (De alguém que não sabia tudo)
 

Vi-o chegar através da cortina empoeirada da janela, um velho Ford quase desconjuntado coberto da poeira amarelada que ali tudo invadia.
Momentos depois alguém batia à porta. Descobrira depressa que a campainha estava avariada.
Quando a abri deparou-se-me um homenzinho baixo, meio calvo, de olhar matreiro e chapéu na mão. O fato escuro estava tão empoeirado como o automóvel e tivera uma vida de muito uso.
-   Bom dia, senhor. Permita-me que me apresente: Douglas Lapuane. – apertei a mão gorda que me estendeu.
-   Bom dia. Chamo-me Roger Dipwater e já tenho bíblias suficientes em casa.
Voltei-lhe as costas e comecei a fechar a porta.
-   Um momento! Um momento, mister! Eu não vendo bíblias e estou certo de que os meus artigos lhe vão agradar. Com licença.
Antes que pudesse esboçar qualquer gesto para o afastar, o sujeito estava na minha sala, abrindo afanosamente uma volumosa mala castanha que eu, por qualquer razão, não avistara anteriormente.
-   Ouça, você está...
-   Um momento, Mr. Dipwater. Veja primeiro esta maravilha.
Voltou-se para mim com um pequeno objecto nas mãos.
-   Uma autêntica maravilha, Mr. Dipwater! Um exclusivo nacional.
-   O que é isso?
-   Mr. Dipwater...! Ainda não descobriu?! Isto é um autêntico relógio, uma mirabolante maravilha que estou certo vai querer possuir.
Olhei para a caixa prateada e só vi números. Um relógio? O homem era doido!
-   Mr...?
-   ... Douglas, para os amigos e clientes.
-   ... Mr. Lapuane. Se isto é um relógio, que é dos ponteiros? – esbocei um sorriso trocista. Ele arregalou os olhos e mostrou os dentes num sorriso de triunfo. Tinha chegado onde queria.
-   Mas aí é que está a novidade, Mr. Dipwater! Esta coisinha que aqui vê não-tem-pon-tei-ros. As horas são representadas por números e nem sequer necessita de lhe dar corda. É um modelo único e exclusivo, por apenas dez dólares! Sem esquecer o brinde: três magníficos volumes encadernados que serão seus absolutamente de graça.
Ele explicou-me com detalhe como a geringonça funcionava. Não costumo ir na conversa dos vendedores que me batem à porta, vendam eles bíblias ou tapetes, mas Mr. Lapuane acabou por me convencer.
Saiu da minha casa com dez dólares no bolso e um sorriso profissional na face. Voltou-se para mim quando chegou ao alpendre.
-   Fez um bom negócio, Mr. Dipwater. Até à vista.
Apertou-me a mão e colocou o chapéu na cabeça, um chapéu que parecia pequeno para ele. Continuei a olhá-lo enquanto avançava para o automóvel gasto, a mala castanha oscilando na mão. Ainda me acenou uma vez, envolvido na mesma poeira amarela em que chegara. Segui-o com o olhar até se tornar um ponto negro na distância, meio oculto pelo pó e distorcido pelos torvelinhos de ar quente. O céu estava limpo e o calor ainda apertava, embora o crepúsculo já não tardasse.
Ainda não falei de mim. O meu nome já o conhecem: Roger Dipwater. Nasci no Midwest, numa pequena cidade perdida na vastidão da paisagem. Fui novo para New York e trabalhei por muitos sítios, em muitos empregos. Consegui frequentar as aulas nocturnas e acabei por conseguir empregar-me numa firma de corretores, na qual fui subindo a pulso e cheguei a sócio. A vida correra-me bem até ao ano anterior, até ao crack da bolsa. Depois desmoronara-se tudo. Restara-me aquela casa, com a sua pequena quinta, e algum dinheiro, pouco. Por ironia, situava-se na região do Midwest...
Tivera poucos amigos antes e agora não tinha nenhum. Vivia uma solidão entrecortada pelas viagens à cidade próxima, para vender os produtos da quinta e fazer as compras, e agora dera-me ao luxo de comprar um relógio por dez dólares. Por muito estranho que fosse não valia esse dinheiro. Começava a sentir-me enganado.
Depois do jantar sentei-me no alpendre. Levei os livros que o vendedor me dera e o relógio. Olhei para ele. Ele dissera-me que... Sim, era verdade! Carregando naquele botão, acendia-se uma luz no seu interior que permitia ver os números que continuavam a pulsar dentro dele. Era na verdade um  relógio estranho. Acabei por colocá-lo no pulso, mas conservei o meu no bolso. Não sabia se o novo era de confiança.
Abri um dos livros. Lia-se na primeira página: "Landscapes and Dignity" por Ashmed Koranshi. Nome estranho aquele, porventura indiano. Por baixo indicava-se: "Impresso em Madrasta, F.L.A. em 2145". Dois mil cento e quarenta e cinco?

Cada dia de Verão tem a sua própria personalidade. Aquele era um dia ardente, em que o ar parecia gritar com o calor que lhe ia nas entranhas.
O pó cobria os arbustos à beira da estrada, dando-lhe a aparência de pequenos homens cinzentos correndo no sentido contrário àquele em que o meu carro seguia. As árvores estendiam por vezes os ramos na minha direcção, pedindo água.
Ia voltar a New York.
Ia voltar ao sítio de onde saíra há quase um ano totalmente arrasado, financeira e moralmente. E agora tornava lá, impelido por uma força que não conseguia explicar. Fora aquela sucessão de estranhos factos que me levara a decidir-me: o relógio, a data de impressão do livro... do livro não! Dos livros! Possuíam todos datas impossíveis: os outros eram "Marching South", por Lars Conrad, datado de 2133, e "Monkey Business and other stories", datado de 2147 e escrito por Thomas Nachtflug. E todos tinham a mesma etiqueta de um pálido cor-de-rosa com letras negras a gritar: New World Corp., 53 46th Street, N.Y.. Eu ia para lá. Algo em mim exigira explicações para tudo aquilo, e eu não fora capaz de resistir ao chamamento.
Tudo naquele dia parecia arder com um fogo interior vindo do inferno e o ar queimava-me o rosto e as ideias queimavam-me o cérebro.

12.7.04

Cinco Segundos - Capítulo X: Post-Mortem

...E estava ali agora, falando para ninguém. Ouvia-os e sentia-os, percorrendo o seu cérebro mil vezes por mil caminhos diferentes, procurando o segredo...
"Estará o futuro escrito em algum lado?", pensou Rickert. "Pobre de mim por conseguir lê-lo às vezes..."
Onde estariam hoje todas as pessoas que tinha conhecido e com quem tinha vivido? Agora não sentia o tempo, só os sentia a eles.
Podia ser Verão lá fora como podia ser Inverno, tanto fazia; nem sabia sequer se "lá fora" ainda teria algum significado para ele. Limitava-se a estar ali, cumprindo a função de cobaia para experiências acerca do futuro. "O meu, confesso que não o descortino," continuou. "Daqui tudo me parece igual numa extensão infinita, do futuro ao passado e com viagem de volta, nublado, obscuro..."
"Aqui é sempre noite..."

Tempo e Paciência...

Arif Kalter nunca soube porque falhara o seu sistema de renovação de ar. As toxinas e as bactérias que este produziu trouxeram-lhe a morte rapidamente, uma morte horrível para além de todas as possibilidades de ressuscitação. Restou um cadáver irreconhecível, coberto de pústulas nojentas de mil doenças e pragas desenvolvidas à velocidade da luz.

Tempo e Paciência...

Quando o autómato de limpeza começou a falar para Colbert MacMahoney através do seu sintetizador de voz cheio de limitações, apenas despertou espanto e curiosidade da sua parte.
Quando as frases começaram a fazer sentido e o espigão multi-usos se cravou no seu peito e o ácido de limpeza lhe destruiu o rosto, o medo não se chegou a instalar. A morte sobreveio mais depressa...

Tempo e Paciência...

Emílio Sanchez não teve tempo de se furtar ao choque. A cabeça, solta do corpo atarracado pela pancada do transporte automático, rebolou pela rua suja de olhos abertos de espanto, procurando compreender o que lhe acontecera. Era evidentemente tarde demais.
Fora apenas mais um acidente numa rua igual a tantas outras. Podia ser uma rua de qualquer sítio do mundo.

Tempo e Paciência...

O gerador de hipnose por impulsos de luz do laboratório de Abe Townsend começou a funcionar anormalmente.
"Maldita máquina!", resmungou o velho. Quando a tentava desligar qualquer coisa aconteceu: os olhos abriram-se muito, e na mente vazia de tudo só uma ideia ficou. Abraham Townsend dirigiu-se resoluto ao armário junto à entrada e retirou a Jeggler do seu interior. Depois meteu o cano largo na boca e disparou.

Tempo e Paciência...

Kirl Takashi-Coltrane gozava os prazeres da lâmpada solar que instalara no seu novo apartamento. Era o modelo mais recente, um pequeno sol inofensivo dentro de casa. Sentia-se cansada, a noitada deixara-a arrasada. Adormeceu acariciada pelos raios mornos e não notou quando a temperatura começou a subir.
- Meu Deus, que calor! – quando tentou levantar-se do braseiro em que se tornara a sua espreguiçadeira não o conseguiu. Alguém lhe enrolara uma corda à volta e prendera a cadeira ao chão. Kay tentou gritar na sala de descanso insonorizada. Lá ao canto o pequeno autómato doméstico (do modelo mais recente) desligou-se. Os seus olhos electrónicos não viram a dona morrer queimada sob a luz impiedosa do pequeno sol.

Tempo e Paciência, a chave do Universo..., pensou mais uma vez Rickert. Todo aquele tempo (dois anos, segundo o computador a que estava conectado) não fora perdido. Aprendera a usar os instrumentos a que estava ligado em vez de ser usado por eles. Aprendera muito naqueles dois anos...
Sabia como utilizar os sistemas informáticos interligados em rede por todo o mundo para obter as informações que queria, ou para atingir os seus inimigos.
Tempo e Paciência, um pouco mais de paciência enquanto preparava todos os detalhes. Entretanto não se esquecera dos amigos: todos eles tinham agora uma boa situação financeira graças a ele. Conseguira também enviar pistas falsas para os grabbers e evitar que qualquer deles fosse capturado. Era uma espécie de anjo da guarda bio-electrónico.
Em todo esse tempo de meditação e aprendizagem nunca esquecera o seu objectivo último. Eles continuavam com os esforços inúteis para compreender o seu cérebro, pobres idiotas! Teriam o que mereciam, já não faltava muito.
O corpo de Rickert, inerte sobre a mesa branca, coberto de fios e sondas, de fluidos multicolores e aparelhos que zumbiam, vivia a sua vida interior. Tinha de lhes agradecer por o terem mantido em excelentes condições.
Tempo e Paciência.
O Tempo da Meditação já passara há muito.
O Tempo da Aprendizagem já começara há muito.
O Tempo da Vingança tinha acabado agora.
O Tempo da Libertação estava quase a chegar...

FIM

Os sinos nunca tocam neste lado do monte (4)

- Estão todos presentes? Muito bem, vou começar a ler o testamento: "Eu, Harlan Swimm, na plena posse das..."
O homem continuou a ler, mas eu não o ouvia. Pobre Harlan. Atirara-se para a multidão, implorando que comessem a sua carne. Não quisera ser reciclado, resolvera tornar a sua morte útil: um pouco da perna direita para ti, a minha cabeça para aquele, o meu braço para este aqui...
Tinham-no despedaçado em segundos e a carnificina continuara até a intervenção policial causar algumas centenas de mortos e 'acalmar' a multidão.
- "... e a Paul Stephenson deixo um exemplar dos poemas de Alexeiev Smithreens e outro do 'Livro dos Mortos' de Eric Landenburg. Espero que os leias, Paul. Acabo aqui. Adeus a todos."
- Ninguém diria ser ele o próximo... – os grandes olhos castanhos de Martie estavam inchados pelo choro.
Pouco falámos uns com os outros. Fomos a casa de Harlan com o executor testamentário e cada um de nós levou as coisas que ele nos tinha legado. Fui para casa. Comprei algumas garrafas na loja do prédio e quando cheguei ao apartamento afundei-me na poltrona com uma garrafa e um copo ao lado. Comecei a passar o tempo.
Engraçado! Após três copos cheios daquela mistela já me devia sentir tonto, no entanto...! O meu coração deu um salto. Olhei para a garrafa e ela estava praticamente cheia. Com três copos bebidos devia estar a meio! Acontecera novamente.
Continuei a beber, mas agora o nível da garrafa baixava e o meu espírito ficou mais e mais embotado, até que adormeci.
Além da cabeça, doíam-me as costas horrivelmente devido à noite passada na poltrona. Liguei o televisor.
"... e outros actos de canibalismo ocorreram, devidos também à ruptura da rede alimentar. Na Amazónia Interior a carga da..."
Desliguei o aparelho. Agora estava mesmo assustado. Olhei para o relógio: dia 7 – Terça-Feira. Pelo menos o dia estava certo, mas aquele tumulto na Amazónia já tinha acontecido quase um mês antes, tinha a certeza!
Um impulso súbito levou-me a abrir o livro de poemas. Tinha uma dedicatória de Harlan, bem estranha: "Para ti, Paul, que talvez aguentes a Verdade..."
Abri-o na página 147, onde se encontrava a 'Ode a uma probabilidade reduzida'. Li-o sabendo que palavras iria encontrar e depois voltei a folha. Na página da esquerda havia uma ilustração do poema seguinte, uma espiral a ser cortada por uma tesoura. Na página da direita estava o poema. Reparei que todo ele estava sublinhado. Li:
"Título: Tempo atrás de Tempo
Corpo: É este o tempo que uma vez negámos?
Gastámos o tempo em vãs teorias
De como o tempo se esvai.
Flutuamos agora no limbo
Das nossas ideias proscritas, malditas.
Tempo atrás de Tempo virá
Dizíamos.
Mas gastámos o tempo a pensar
Em coisas que não serão,
E agora
Tempo atrás de Tempo
Não há."

Reli-o uma vez e outra, sem compreender a razão porque Harlan o sublinhara. Pousei o livro e fui lavar-me.
Foi no duche que a verdade me apanhou! Fechei a água e fiquei ali, molhado e nu, exposto à horrível verdade que antes o meu espírito não quisera ver. O tempo era a solução! Vesti-me e comi, depois telefonei a todos. Déjane pareceu surpreendida no visor do telefone mas eu não lhe forneci mais explicações.
Três horas depois estávamos reunidos no meu apartamento acanhado. Todos se interrogavam sobre o porquê daquela reunião apressada.
Distribuí bebidas por todos e depois pedi silêncio.
- Por favor. Silêncio.
Fui encarando cada um enquanto pronunciava os seus nomes:
- Justin,
Magda,
Brett,
Isabelle,
Ernst,
Martie,
Kaspar,
Rijkaard,
e Déjane.
Acabei de descobrir o que Harlan queria que eu descobrisse, e receio por mim e
por vós.
Digo-vos tudo numa frase:
Gastámos o tempo! Não o meu e o vosso, mas o de todos! Mais tarde ou mais
cedo ele acabará para todos nós. Não estou a falar da morte, estou a falar de algo
mais radical.
As caras estupefactas mostravam descrença.
- Não vos têm acontecido pequenas coisas inexplicáveis, repetições de coisas acontecidas?
Alguns assentiram com a cabeça.
- Então pensem, pensem um pouco! Esta é uma festa de despedida. De despedida da vida, que mais tarde ou mais cedo nos abandonará. Divirtam-se muito, porque pode ser a última vez que o fazem...

A festa durou até tarde. Arrumou tudo nos seus lugares. Uma casa desarrumada tem ainda menos espaço, embora isso pouco lhe interessasse agora.
Abriu a gaveta e colocou o explosor em cima da secretária. Foi buscar papel e escreveu duas curtas missivas, uma para todos, outra para Déjane.
Levou a arma à cabeça e hesitou um pouco. Premiu o gatilho e...
Abriu a gaveta e colocou o explosor em cima da secretária. Foi buscar papel e escreveu duas curtas missivas, uma para todos, outra para Déjane.
Levou a arma à cabeça e hesitou um pouco. Premiu o gatilho e...
Abriu a gaveta e colocou o explosor em cima da secretária. Foi buscar papel e escreveu duas curtas missivas, uma para todos, outra para Déjane.
Levou a arma à cabeça e hesitou um pouco. Premiu o gatilho e...
(repetir para sempre, até se acabar o tempo)

FIM

11.7.04

Cinco Segundos - Capítulo IX: Tempo para Viver, Tempo para Morrer

Ali, agora, tudo parecia já distante e esbatido na memória. Mary-Ann permanecia adormecida ao seu lado na cama fofa daquele quarto da pensão Início do Tempo, na parte oeste de Bluebank. Com a ajuda preciosa dos amigos, ele e o Massa Lenta tinham conseguido recuperar as suas coisas dos lares agora interditos. Convencera Mary-Ann a segui-lo na viagem de regresso à Terra e viviam juntos desde então, um escasso par de semanas transformado em jardim das delícias.
Tinham eliminado todas as velhas carcaças anteriormente envolvidas na conspiração com a mesma limpeza com que ele liquidara os seus opositores alguns dias antes. O cartão negro de Arif Kalter tivera um papel fundamental na sua fuga da Lua. Provavelmente não teriam escapado sem ele.
Agora, depois de tudo terminado, pudera voltar à sua vida quotidiana e aos delitos de todos os dias, ao jogo do gato e do rato com os grabbers e ao ar poluído da megalópole que era o mundo. Tudo normal no paraíso...

- Está muito bom, Mary.
- Como vês, além de cocktails também sei preparar pequenos almoços. – o som da campainha interrompeu a conversa.
- Sim!? – inquiriu Mary-Ann. A voz metálica que se ouviu através do intercomunicador já era conhecida de Rickert.
- Queria falar com o Mickie.
Mary-Ann voltou-se para Rickert interrogando-o com o olhar.
- Abre, eu sei quem é.
Vinnie Smolensk entrou de rompante no quarto-apartamento e abraçou Rickert com força.
- Oh Mickie, Mickie!... Parece que foi há tanto tempo! – o cabelo dela tinha agora três tons de vermelho que trocavam de posição rapidamente e entonteciam quem a olhava com mais atenção.
- Como é que me descobriste aqui? Quem te disse?
- Foi o Massa Lenta, ele precisa de falar contigo.
- Porque não veio ele?
- Está com problemas, por isso mandou-me cá a mim. Precisa da tua ajuda.
- O que é que te aconteceu naquela noite?
- O bruto que entrou no nosso quarto bateu-me com força. Acordei no dia seguinte sem saber onde estava. Depois levaram-me para a costa oeste e largaram-me lá sem dinheiro nenhum; só agora consegui voltar para casa. Vens ou não?
Havia qualquer coisa que não fazia sentido, mas Rickert não conseguiu descobrir o quê. A necessidade que o Massa Lenta tinha do seu auxílio levou-o a deixar as suas cogitações para mais tarde.
- Vamos. – disse para Vinnie – Até mais tarde, querida.
- Eu tenho ali um jetcar.
- Um jetcar! Subiste na vida.
- Foi um amigo que o alugou, não é meu.
- De qualquer maneira... Para onde vamos?
- Flatland. – respondeu ela num tom seco enquanto colocava os óculos espelhados Hu-Yang, modelo Paz Celestial, cinco segundos atrasados do resto do mundo.
O sítio para onde se dirigiram era num dos níveis superiores de Flatland, onde o sol sujo ainda chegava com alguma eficácia.
- É aqui. – disse Vinnie enquanto lhe dava o braço – Lembras-te do que fizemos naquela noite?
Rickert ia sorrir-se mas não teve tempo. Sentiu uma picada no braço e o mundo começou a rodar à volta dele. Ainda viu a porta metálica a abrir-se antes de ficar tudo negro.

Sentiu as cordas que o prendiam primeiro que tudo. Depois abriu os olhos e viu a pequena assembleia à sua frente. Doc Abraham Townsend cofiando as barbas, Vinnie sentada numa cadeira e com o olhar ausente, Arif Kalter a sorrir-se, Kirl Takashi-Coltrane com um olhar provocante, e Colbert MacMahoney com a eterna beata apagada no canto da boca. O outro não o conhecia. Foi Arif quem falou:
- Embora você conheça quase toda a gente que aqui se encontra não serão de todo descabidas algumas, digamos, re-apresentações. Ali na ponta decerto reconheceu o Doutor Abe Townsend que elaborou o programa de condicionamento e lhe apagou a memória. Ah sim, e depois recuperou-lha de novo! Depois temos Vinnie Smolensk, pobre vítima inocente das programações do Doutor Abraham... Com a sua capacidade de detectar as situações de perigo iminente tínhamos de utilizar alguém da sua confiança para o capturar. Aqui à minha esquerda está a Kay, que fez um trabalho excelente de direccionamento das suas acções, e também outro seu conhecido, Colbert. Um operacional de muito valor, como sabe. O mexicano é o Emílio. Lembra-se dele, o vizinho curioso? Só falta aqui o Jikx porque tem muito trabalho no bar.
Rickert tentou falar mas os músculos dos seus maxilares não obedeceram. Tinham-lhe ministrado qualquer droga selectiva.
- Como desta vez o apanhámos para valer, vou contar-lhe o fim da história que iniciei na Lua. Esta é uma versão ligeiramente diferente... O nome da operação era Vaga de Maré ou, se preferir, Tidal Wave. Você era a chave de tudo, as suas reacções determinariam o curso da operação. Felizmente você reagiu sempre de acordo com as previsões. Sei o que está a pensar: então e as mortes de Lucius e de Ariel? Não, senhor Rickert, não foram fruto do acaso; esses dois senhores convinham-nos mais mortos do que vivos, por isso foram eliminados por si. Ah, antes que me esqueça: a Mara Simpson também foi ligeiramente condicionada; tinha de haver testemunhas da cena do beco. Qual o objectivo de tudo isto, perguntar-se-á? Nada mais simples: poder! Poder quase ilimitado para a Aumann-Yoko. Nós já dominávamos quase por completo a Administração. Os velhos que você matou há duas semanas eram nossos aliados. O que eu lhe contei em Moonkrater era também o que eles pensavam ser a verdade, a parte que lhes faltava saber era a de que a Aumann-Yoko planeara também a sua eliminação. Um golpe inteligente, não acha? Eliminámos tanto os que criticavam a nossa influência na Administração como aqueles que eram nossos aliados. Agora nós somos a Administração. Fim da história. Deve interrogar-se sobre o que lhe vai acontecer, suponho. Sabe senhor Rickert, você tem um talento muito especial e que nós utilizámos com prazer; acontece que ainda não descobrimos o que o provoca e, sabe... nós somos muito curiosos.
Arif Kalter começou a rir. Todos começaram a rir excepto Vinnie, que continuava sentada e de rosto impassível.
A última imagem que viu foi a de Colbert a aproximar-se dele.
A última sensação que teve foi a de uma leve picada no pescoço.

Os sinos nunca tocam neste lado do monte (3)

O edifício em que Martie Schon vivia estava condenado à demolição há pelo menos cinquenta anos. Ele e o resto do quarteirão. Como sempre, o único elevador existente não funcionava. Tinha de subir oito andares, desgraçadamente!
Era um prédio do fim do século XX, quase uma relíquia arqueológica. A modificação mais visível que sofrera fora o reforço do piso térreo para evitar penetrações dos Ausless.
Ainda o quarto andar. Droga! Mas!?... Não passara já eu pelo quarto andar? Sim, lá estavam os cacos de uma garrafa estilhaçada que eu tinha visto um piso abaixo, no quarto andar. "Não, impossível, não estou louco!", pensei. Continuei a subir, ansioso por ver a placa que indicava o número do piso. Já a via! Quarto andar!! Não era possível! Simplesmente, não era possível! Subi os degraus três a três e foi ofegante que cheguei ao piso seguinte. Fechei os olhos com força antes de olhar a tabuleta: quinto andar! Finalmente! O que é que me acontecera, afinal? Subi os pisos que faltavam para o oitavo num passo rígido, esperando ansioso por cada placa.
Oitavo andar. Chegara. Andei pelo corredor até ao apartamento 105, toquei à campainha e aguardei.
- Paul, entra. Porque demoraste tanto tempo a subir?
Esbocei um sorriso quando respondi:
- Vim devagar.
- Bebe um copo desta coisa, Paul. Foi o Rijkaard que arranjou.
- Obrigado Justin. Halst!
- Halst!! – responderam em coro.
Procurei Martie.
- Martie, tens a certeza de morar no oitavo andar?
- É evidente que tenho!
- Há muitas crianças, no prédio?
- Algumas, mas todas legais. Porquê?
- Por nada, apenas curiosidade.
- Sempre o mesmo, Paul. – era a voz rouca de Magda que soara nas minhas costas.
- Foi a curiosidade que nos tirou das árvores. – respondi-lhe.
- Talvez lá estivéssemos melhor.
Sorri com a sua resposta.
Justin Beeliver voltou à carga, já meio cabeceante, renovando o nível de líquido no meu copo.
- Este material é do bom, hei, Paul?
- É sim, Justin. E tu estás a fazer-lhe as honras.
- Halst, Paul!
- Halst, Justin.
- Quem tem o copo vazio, quem é? – afastou-se com a garrafa meio vazia numa mão e um copo cheio na outra.
A festa animava-se, mas os cacos de vidro repetidos três vezes multiplicavam-se na minha cabeça e cortavam-me as ideias. Decidi beber muito.
Centenas de anos de progresso não tinham inventado uma cura para a ressaca. Talvez fosse necessária para não bebermos demais, mas no momento achava-a supérflua e a minha cabeça latejante concordava comigo. Os caracteres no écran do monitor pareciam não ter contornos definidos, e quando a dor na minha cabeça apertava pareciam contorcer-se de dor também. O meu turno só acabaria daí a uma hora, e quando a tarefa é desinteressante o tempo custa a passar. O meu trabalho só ganhava interesse quando algo avariava, e isso raramente acontecia. O resto consistia em olhar para um écran de monitor e ir confirmando que os diversos parâmetros do sistema estavam dentro dos limites de segurança.
Subitamente uma luz amarela acendeu-se no painel a meu lado e um tom puro de três mil ciclos por segundo, já meu conhecido de outras ocasiões, ecoou na pequena sala envidraçada. Digitei apressadamente no teclado:
- STOP LINE-4
"LINE-4 STOPPED – TIME 1321"
- SEARCH FOR ERROR CONDITION
"NO ERROR CONDITION"
Impossível! Olhei para o painel e lá estava a luz amarela, piscando. Além disso o som do alarme continuava a soar nos meus ouvidos, era impossível que não existisse um erro na linha de produção! O manual dizia: "Alarme Amarelo – erro no processo de produção. Efeito Final: deficiência grave no produto acabado = produto final defeituoso.". Raio de computador! Repeti o comando:
- SEARCH FOR ERROR CONDITION
"GASTASTE O TEU TEMPO. GASTARAM TODOS O VOSSO TEMPO"
O que era aquilo, escrito em grandes letras vermelhas no écran do monitor?
- Escrevi novamente 'SEARCH FOR ERROR CONDITION', e recebi como resposta 'NO ERROR CONDITION'. Que raio teria sido aquilo? Agora notava: o som cessara! Olhei para o painel: a luz apagara-se! Era muito estranho...
- START LINE-4
"LINE-4 STARTED – TIME 1317"
As máquinas da linha de produção 4 puseram-se em movimento e os braços robots reiniciaram a sua tarefa cíclica.
Apesar da aparente normalidade, eu estava mais aterrorizado que nunca: tinha a certeza quase absoluta que a hora indicada pelo computador fora 13.21. Como é que aparecia agora no écran uma hora anterior a essa? Negava-me a acreditar, embora o meu relógio corroborasse a versão do computador. Tinha a certeza que algo de anormal se passara.

9.7.04

Cinco Segundos - Capítulo VIII: O Regresso ao Local do Crime

Rickert olhou uma vez mais para a superfície esburacada que o monitor do seu assento lhe mostrava. A Lua continuava com o mesmo aspecto e a mesma cor que da última vez em que ali estivera. Viera antes para cometer um homicídio múltiplo, vinha agora para eliminar quem o levara a cometer esse crime. Um nome não lhe saía da mente: Arif Kalter, representante da Aumann-Yoko no satélite da Terra. Fora ele que os auxiliara na fuga, obtendo-lhes novas identidades que lhes tinham permitido o regresso à Terra sem sobressaltos. Na fuga do Clube Apolo, Rickert detectara todos os possíveis perigos e tinham saído incólumes do complexo. Tinham largado a carrinha na zona industrial, onde os esperava um veículo rápido que os levara até aos aposentos de Arif Kalter no edifício da Aumann-Yoko, bem no centro de Moonkrater. O resto fora quase rotina e uma vez chegados ao espaçoporto de Willow haviam regressado a Flatland de magnetrain, misturados com a multidão.
A voz suave fez-se ouvir: a alunagem estava próxima. Ao seu lado o Massa Lenta fazia estalar os dedos, lívido. Ele nunca saíra do planeta e aquela viagem estava a arrasar-lhe os nervos, mas se não fosse a sua habilidade para penetrar nos sistemas informáticos alheios nunca poderiam tê-la realizado pela simples razão de não possuírem dinheiro para ela. Uma subtil alteração nas reservas do moonscrapper que partia de Willow arranjara-lhes dois lugares no primeiro voo do dia seguinte. O relógio à sua frente dizia que eram 9:05 do dia 15 de Setembro, Tempo Padrão Terrestre.
Com a rememorização dos quatro dias perdidos soubera também como fora parar ao beco. A pretexto de comemorarem num bordel o sucesso da operação tinha ido com Ariel e Lucius para o Sinheaven. Colbert iria directamente para lá. Fora muito engenhosa a utilização da identidade do último homem que ele tinha morto como a sua própria identidade. Foi ainda como Serzenko que foi até ao beco para que os três vissem coisas interessantes através das janelas dos quartos do bordel. A última coisa de que se recordava como Serzenko, assassino profissional, era da voz de Ariel a chamá-lo e dum clarão intenso que lhe queimara o cérebro. Acordara horas depois como o Rickert que sempre fora, molhado até aos ossos sobre um monte de sucata à espera da reciclagem.
O sinal luminoso do painel informou-o que o moonscrapper "Twilight" tinha entrado na sua órbita de alunagem e que ele, Rickert, estava irremediavelmente em rota de colisão.

O edifício da Aumann-Yoko resplandecia como um diamante. Ao pé dele as instalações governamentais mais pareciam casebres. Apenas puderam vê-lo por alguns instantes, enquanto o transporte de cidade os levava para o mesmo hotel onde Rickert havia ficado na sua visita anterior. O Massa Lenta já estava menos pálido embora o seu rosto ainda mostrasse apreensão.
Passaram a tarde a instalar-se e a verificar a artilharia depois de um almoço um tanto frugal num dos restaurantes do hotel. Os estômagos de ambos ainda protestavam contra a gravidade anormal que sentiam.
Rickert olhava para as armas que o Massa Lenta trouxera e interrogava-se como tinha ele feito passar todo aquele arsenal pelo controlo do espaçoporto. O Massa Lenta era um homem muito versátil. Deitou-se na cama e deixou a mente divagar. Olhou o seu rosto no espelho do tecto e notou as olheiras negras e as rugas de preocupação na testa. O cabelo estava revolto como sempre, negro e baço. Começava a olhar-se cada vez mais como a um desconhecido.
- Jantamos no hotel e depois vamos ao bar, o que é que achas?
- Por mim está bem. – respondeu o Massa Lenta sem tirar os olhos da arma que estava a montar.
- Conheço lá uma pessoa.
- Isso pode ser perigoso.
- Não creio. Eles abafaram completamente o caso, ninguém sabe das mortes. Ela até pode ajudar-nos!
- Tinha de ser, Rickert. Nem mesmo eles conseguiram mudar isso em ti.
- Ela era muito bonita. Como vamos fazer, falamos directamente com Arif Kalter?
- Ele é o manda-chuva da Aumann-Yoko aqui na Lua. Achas que é chegar lá e pedir para falar com ele?
- Eu não disse que íamos entrar pela porta da frente, existem muitas maneiras de falarmos com ele. E muitos sítios, também.
- Não queria ser reciclado aqui na Lua.
- Havemos de voltar vivos, Massa Lenta. Hoje vamos divertir-nos, amanhã começamos a caça.
O Massa Lenta arrumou as armas num saco enorme e dirigiu-se para a porta do quarto.
- Daqui a meia hora, lá embaixo. – disse.
- Ok. – Rickert resolveu levantar-se e ir tomar um banho rápido. Iria gostar de rever Mary-Ann.

De todas as coisas que existiam na Lua, Mary-Ann era certamente uma das melhores. Ela parecia não se ter importado muito com o seu desaparecimento súbito, ou pelo menos não o deixara transparecer. Ficara mesmo contente quando o vira, Rickert reparara no brilho dos seus olhos.
Tinha sido uma noite óptima, como já a outra tinha sido, mas agora a acção tornava-se necessária. O Massa Lenta retirara-se do bar sozinho, estava demasiado nervoso para pensar em mulheres. Retirado do seu meio ambiente sentia-se deslocado, não perdera a sua eficiência mas estava anormalmente agitado para quem costumava fazer gala de uma frieza imperturbável. Felizmente Mary-Ann saíra cedo do quarto e Rickert podia começar com os preparativos da caçada a Arif Kalter.
Existia a eventualidade de ser um dia perdido se a rotina de Arif Kalter não o levasse a locais que permitissem uma abordagem "informal". Nada aconteceu até às 16:15. Foi a essa hora que ele saiu no seu transporte privado com apenas dois guarda-costas e destino desconhecido. O veículo só parou junto a um edifício que dava pelo nome de Paraíso Cósmico e que uma rápida consulta à consola informativa do carro revelou ser um bordel de luxo.
- É a nossa oportunidade, Rickert. Só dois guarda-costas e um sítio ideal para o interrogarmos.
- Tens tudo pronto? – o Massa Lenta entreabriu o blusão e mostrou o dispositivo que elaborara: uma arma de tiro rápido com um lançador de dardos montado por cima – Então vamos.
A recepcionista não teve tempo para esboçar a mínima reacção. O Massa Lenta puxou-a da cadeira contra a parede e disparou o lançador à queima-roupa.
- Têm o mau hábito de accionar alarmes escondidos. – explicou.
Rickert consultou os registos no terminal. Não existia nenhum Arif Kalter na lista, mas pela hora de entrada concluiu que o homem da Aumann-Yoko era referido como Suleiman Metterling.
- Quarto 23.
O veludo negro que forrava as escadas abafava o ruído dos passos de Rickert e do Massa Lenta. Ouviram-se dois silvos e os guarda-costas de Arif Kalter caíram no chão quase sem ruído. A fechadura composta não foi grande adversário para o Massa Lenta, alguns segundos bastaram para penetrarem no quarto.
Arif Kalter estava sentado na cama e lutava com as suas peúgas. Uma rapariga de aspecto oriental estava deitada nos lençóis de cetim cor-de-rosa pálido, completamente nua. Uma situação perfeitamente normal.
O homem da Aumann-Yoko não tentou reagir, esboçou apenas um sorriso e voltou-se de frente para os invasores.
- Espero que me perdoem por os receber assim, não esperava qualquer visita nesta altura, como aliás devem compreender. Senhor Rickert, – cumprimentou – e você deve ser o Massa Lenta.
- Vamos acabar com a conversa de chacha. Você sabe porque estamos aqui.
- Perfeitamente! E vou esclarecer todas as vossas dúvidas. O que aqueles velhos exigiram à Aumann-Yoko não vale de maneira nenhuma a minha vida, ainda sou novo e espero atingir lugares mais altos na nossa organização. – Rickert e o Massa Lenta entreolharam-se surpreendidos pela inesperada colaboração.
- Nunca concordei no envolvimento da Aumann-Yoko neste tipo de operações – continuou – mas sou apenas um funcionário sem grande influência nas decisões da administração. Posso vestir-me? Muito bem, seria melhor que se sentassem porque é uma história muito comprida.
Traição! Uma só palavra e, no entanto, tão usada ao longo da História. Nos esgotos que eram os meandros da Administração as ratazanas lutavam pelos recantos onde chegavam as réstias de luz, cortando as goelas umas às outras e utilizando quase sempre outros ratos para fazerem o trabalho sujo por elas. Rickert fora o rato daquela traição: a jovem oposição (todos aqueles velhos nojentos que matara na sala 109 do Clube Apolo) protestara demais, e o poder estabelecido (outros velhos tão velhos quanto eles) conspirara para os eliminar. Usaram as ligações à poderosa Aumann-Yoko e trataram de os assassinar por atacado. A companhia escolhera Rickert depois de descobrir no seu mapa cerebral umas circunvoluções muito prometedoras. Adivinhador de futuros, era isso que ele era. Fora escolhido porque, inconscientemente, detectava as situações de perigo um instante antes de elas acontecerem. Uma máquina de leitura do futuro imediato que não sabia que o era: quem melhor do que ele para desempenhar uma missão num ninho de vespas? O rato nunca sabia o porquê, mas isso não era necessário desde que desempenhasse a tarefa a contento. Para mais, polícia e Aumann-Yoko nem sempre se destrinçavam. Era fácil obter tudo para uma organização tão poderosa.
- Como vêem, nem tudo o que parece ocasional o é na realidade. Uma ficção bem elaborada pode substituir com vantagens a sucessão incerta dos acontecimentos. Você foi um bom actor Rickert, desempenhou de uma forma esplêndida o seu papel! Ninguém esperava que você fosse tão insistente. – levantou-se e foi até ao casaco que deixara pendurado no varão da roupa. O Massa Lenta levantou-se – Não esteja nervoso, eu nunca ando armado. Isto é para vocês, uma pequena contribuição da minha parte para acabar com esses velhos asquerosos. – entregou a Rickert um cartão em plástico negro com letras douradas – Apesar da cor esse cartão dá-vos carta branca aqui na Lua. Vai permitir-vos chegar até eles e sair daqui sem problemas. Esses velhos que nos governam passam quase todo o seu tempo aqui, entre operações plásticas e transplantações mais ou menos complicadas. Alguns já se instalaram permanentemente; uma gravidade fraca é óptima para a longevidade. Costumam reunir-se no Foggerty, um clube ultra-selectivo ao norte do complexo central. Penso mesmo que se reúnem todos os domingos ao início da noite. – olhou para o relógio e sorriu-se – Ainda têm tempo.
- E porque é que faz isto? – interrogou Rickert.
- Digamos que é a minha pequena vingança por não ter sido ouvido pela administração da Aumann-Yoko.
Rickert olhou para o Massa Lenta e fez um pequeno movimento com a cabeça. O corpo inanimado de Arif Kalter tombou na carpete espessa e o da rapariga ficou inerte sobre os lençóis de cetim cor-de-rosa pálido. Só dois silvos sucessivos haviam quebrado o silêncio.

8.7.04

Os sinos nunca tocam neste lado do monte (2)

Déjane falava-me:
- Onde trabalhas agora?
- Fui transferido para a Carsworth; tenho a meu cargo a manutenção de dez linhas produtivas. Durante os dois turnos semanais só vejo robots e por vezes um inspector que, ainda que seja humano, faz por não o parecer.
- Eu agora estou no norte, na Mansleep. Já ando enjoado de tanto viajar no turbojet. – Kaspar Boll fez um esgar de nojo quando mencionou a palavra.
- Enquanto tu viajas de turbojet, há milhões que nem um gallebrot têm para comer.
Harlan Swimm sempre se preocupara demais com os outros, daí talvez as rugas que cada vez mais lhe pesavam na face.
Fez-se de novo o silêncio. O sorver lento do líquido quente aclarou-me o pensamento e levou para longe um pouco da angústia que sentia.
Martie Schon levantou-se num ímpeto.
- Mas o que fazemos aqui, meu deus? Escolhemos o próximo?
Martie era modelista mental na Sunnet Enterprises, impulsiva por natureza e loura por vontade própria.
- Podias falar sem arcaísmos.
- Fazias melhor se estivesses calado, Harlan. Com todas as tuas preocupações sociais e com todo o teu rigor de comportamento és o mais egoísta de todos nós.
Harlan lançou-lhe um olhar gélido.
- Julgas-te superior, mais equilibrado que qualquer um de nós, pensas que quando todos estivermos ausentes tu ainda estarás aqui! Não penses isso, Harlan, podes ser o próximo.
Sentou-se e parou de falar tal como começara, num ímpeto, e fixou o olhar num ponto indefinido da alcatifa que cobria o chão.
Pelo que me tocava, e embora não o sentisse, podia ser eu o próximo. Eu, Paul Stephenson, técnico superior de manutenção, trinta e um anos, cujo epitáfio seria, se me respeitassem a última vontade, "não quero ser bolacha!". Não, não seria em mármore, nem teria razão para o ser. Não haveria campa, nem caixa de cinzas, apenas meia dúzia de bytes esquecidos numa qualquer memória prímeva de um periférico de computador. Podia ser eu o próximo!
- 'A dor que sinto não é minha
É a dor de todos os que sentem
Por se sentirem a mais nesta ilha.
Talvez um dia, um qualquer dia, nos divisemos no Além.'

Fora Déjane quem dissera as palavras, saídas da sua boca como se de uma lengalenga se tratasse. Todos sabíamos o poema, era como uma senha do grupo. Tinha sido decorado no tempo da escola, quando o futuro ainda era distante e a morte um sonho que ficava noutro lado.
Alexeiev Smithreens: 'Ode a uma probabilidade reduzida', escrito no exílio, na Antártida, em Agosto de 56. Em Agosto de 2356. Quando tiver tempo, talvez leia mais algum livro seu...
- Vamos embora – disse Rijkaard Aygens, do alto dos seus dois metros culminados por uma cabeleira de um louro quase branco.
- Sim, vamos embora. – concordei eu.
- Vêmo-nos no próximo sábado - disse Magda.
Os murmúrios de concordância foram os últimos sons que ouvi nessa tarde cinzenta, na casa de Ernst Ribbon.

- Já acordaste?
- Não.
- Então como é que respondes?
- É automático, em mim.
- Burro!
Atirou-me com a almofada e levantou-se de seguida, indo para a casa de banho.
Déjane era a minha companheira habitual. Há mais de um ano que tínhamos trocado os olhares pelas carícias. É evidente que não vivíamos juntos, nem faria sentido viver. O espaço já era pouco para um, com duas pessoas o apartamento tornar-se-ia inabitável.
Senti o ruído da água corrente na casa de banho. Liguei a TV: um locutor esgrouviado gritava as últimas notícias, secundado pelas imagens que corriam ao seu lado.
"... e outros actos de canibalismo ocorreram, devidos também à ruptura da rede alimentar. Na Amazónia Interior a carga da polícia e as disputas consequentes provocaram cerca de três mil vítimas mortais. Todas as vítimas eram Ausless. Passemos agora..."
O écran escureceu quando desliguei o televisor. As notícias variavam pouco. Mudavam os lugares, mas os acontecimentos não: actos de canibalismo, seguidos da inevitável repressão policial; massacres sangrentos cometidos por suicidas loucos; reuniões ocas de chefes políticos que pretensamente resolveriam os problemas... Sempre igual a si mesmo, o homem.
- Vais tomar banho, Paul?
- Talvez.
- Eh, tanta amargura! Porquê, Paul? A tua dor não vai modificar o mundo. Ele corre por si, e rola sempre pelos caminhos mais profundos. Nunca ouviste falar da Lei da Mediocridade de Affar?
- Conheço-a bem demais.
Ela soltou um gorjeio.
- Vejo-te no sábado, em casa da Martie. Adeus.
- Adeus...
Deixei-me ficar afundado na poltrona coçada por muitos momentos de preguiça e desânimo. O turno extra que faria no domingo parecia pesar-me já nas pernas. Que se lixasse! Seriam apenas seis horas de trabalho.

6.7.04

Cinco Segundos - Capítulo VII: As Terras Estranhas debaixo do Sol

De Vinnie nada conseguiram saber. Tê-la-iam eliminado? Não parecia a Rickert que Vinnie entrasse nos planos deles, fora antes um percalço que eles tinham resolvido com uma pancada na cabeça e, talvez, com um tiro na nuca.
Rickert mexeu-se inquieto na cadeira do consultório de Abraham Townsend. Estava preso a ela por diversos cintos e tinha a cabeça cheia de sensores e de sondas não-intrusivas.
- Ok Abe, faz o teu melhor aqui com o meu amigo Rickert.
- Eu faço sempre o meu melhor. – respondeu Abe com uma expressão que deixou dúvidas a Rickert sobre a sua competência – Descontraia-se.
- Isso é bom de dizer. – respondeu-lhe Rickert.
- Primeiro vou tentar recuperar as memórias que foram eliminadas da sua sequência temporal, depois farei uma rememorização para que elas fiquem estáveis. Está preparado? – Rickert encolheu os ombros, resignado. Abe Townsend carregou num botão e Rickert sentiu que caía. Tentou agarrar-se aos braços da cadeira mas estes tinham-se transformado em geléia. Atravessou o soalho gelatinoso e depois todos os níveis de Flatland até ao mar. Sentiu a água suja invadir-lhe os pulmões e depois o sopro quente de rocha aquecida. Só parou no centro do planeta e respirou sofregamente o metal derretido do núcleo.
- Eh Rickert, estás a ouvir-me? – o Massa Lenta esbofeteou novamente Rickert até que este deixou escapar um gemido – Ainda está vivo! Acorda homem, tens outra viagem para fazer.
Atordoado, voltou lentamente ao mundo dos vivos e balbuciou o pedido que lhe ocupava a mente:
- Alguém me dá água?
- Sente-se bem, Rickert? – perguntou Abe enquanto lhe colocava um copo de plástico nas mãos trémulas.
- Para quem acabou de ser virado do avesso não estou muito mal.
- Muito bem! Então podemos começar com a rememorização. Já se recorda do que se passou nesses dias que tinha esquecido?
- Como um sonho, bastante desconexo aliás. É tudo muito vago...
- A rememorização já vai alterar isso.

Vinnie voltou-se e levou o cobertor com ela. Rickert, meio acordado meio a dormir, tentou puxá-lo e cobrir-se minimamente. Ouviu a campainha tocar: dois toques curtos e um terceiro mais longo.
Voltou-se para o outro lado. Sentia a boca seca e a cama estava anormalmente incómoda. Tacteou à procura do controlo das luzes mas não o encontrou. Como a sede era cada vez maior decidiu levantar-se e ir beber água à casa de banho. Um ruído de fundo metálico entrava-lhe nos ouvidos e incomodava-o. Nunca se habituara completamente à vida em Flatland. Tomou um banho rápido e vestiu-se. Colbert, no dia anterior, informara-o de que teriam uma missão importante para realizar. Não lhe dissera os pormenores, apenas que estava muito dinheiro em jogo. Para quem vivia de homicídios e outros golpes era agradável ouvir isso.
O dinheiro sempre o fascinara. Fora mesmo por ele, pela sua escassez nos seus bolsos, que se tornara assassino profissional. Era uma profissão bem remunerada, embora um tudo nada mais perigosa do que a de caixeiro numa loja de subúrbio.
Abriu a porta da sala onde se costumavam reunir. Já lá estavam Colbert e Ariel Montezuma, um tipo que costumavam utilizar quando era necessário um terceiro homem.
- Bom dia Serzenko, dormiste bem? – disse Colbert com o seu eterno sorriso e uma beata apagada dependurada dos lábios – O Ariel também passou aqui a noite, ontem não estava em condições de conseguir voltar para casa. – riu-se com vontade, no que foi imitado por Ariel. Serzenko apenas conseguiu sorrir-se, os efeitos da ressaca pesavam-lhe ainda muito na cabeça para que achasse graça à bebedeira da noite anterior. O bar do Jikx estivera invulgarmente animado.
- Eu vou andando. Se precisarem de mim sabem onde me procurar. Adeus Serzenko, até à vista.
Serzenko sentou-se e começou a eliminar metodicamente o café que se encontrava na cafeteira plástica à sua frente.
- Pois é, Serzy. Nunca tivemos um contrato tão importante, isto pode ser o início de mais altos voos. – atirou com alguns papéis para a mesa – Bilhetes para Willow. Vamos apanhar o moonscrapper às cinco da tarde.
- Moonkrater? Então deve ser mesmo importante! Em Moonkrater só há ricos muito ricos e saloios que não encontram melhor maneira de gastar o seu dinheiro a não ser numa viagem à Lua. Quem vamos eliminar? Um rico muito rico ou um saloio? – Colbert não respondeu.

Nunca se havia de habituar à imponderabilidade, não possuía o mínimo resquício de vocação para ser astronauta. Resolveu fechar os olhos e continuar a sugar o café amargo através do tubo alimentar. Sentia a força dos cintos que o seguravam ao assento de cada vez que os retrofoguetes faziam uma correcção à trajectória da nave. Ainda não sabia quem iam eliminar mas isso não era importante, enervava-o mais a perspectiva da alunagem em Moonkrater.
Não fora a voz suave da hospedeira que o acordara mas sim o cotovelo de Colbert.
- Estamos a chegar. – Serzenko abriu os olhos a custo e olhou para o painel informativo à sua frente que indicava como hora provável de alunagem as 9:31 do dia 4 de Setembro, Tempo Padrão Terrestre. Verificou os cintos e guardou nas bolsas tudo o que andava mais ou menos solto. Os efeitos da travagem começavam a fazer-se sentir e daí a minutos entrariam em órbita de alunagem. O monitor mostrava crateras de todos os tamanhos no mesmo cinzento baço que era a cor dominante na Lua.

Os quartos dos hotéis de Moonkrater não eram muito grandes. O espaço era vital num mundo em que ele tinha de ser conquistado ao vazio do espaço. As janelas octogonais de cristal sintético mostravam parte da cidade e mais ao longe a parede da cratera. A viagem do espaçoporto até à cidade fora cansativa, três horas de solavancos minimizados pela suspensão sofisticada do veículo de superfície. Ainda assim Serzenko sentia o corpo dorido. Não se habituara à gravidade reduzida do satélite nem à luz crua que entrava pelas janelas. Colbert entrou e atirou com uma arma de tiro rápido para cima da cama.
- Preparado, Serzenko?
- Quem vai ser contemplado?
- Na sala 109 do Clube Apolo. Todos aqueles que lá estiverem.
- Quantos?
- Provavelmente cinco. Podem ser mais. Amanhã depois do almoço, três horas. Eu vigio, tu executas. O mais difícil vai ser chegar à sala.
- Guarda-costas?
- Bastantes. Encontramo-nos amanhã às 13:30 na Avenida Gagarin, junto à fonte cor-de-rosa. Até lá não nos conhecemos. – saiu do quarto sem mais palavras. Serzenko resolveu tratar das armas antes de ir jantar.

As bailarinas executavam passos de dança que seriam impossíveis na Terra. Os clientes gostavam: velhos ricos cobertos de plásticas mas exalando podridão, prostitutas de serviço, herdeiros milionários e outra fauna de mais difícil identificação. Os criados de mesa que praticamente voavam sobre as cabeças dos clientes causavam-lhe impressão. Desde que entrara no bar que esperava que algum lhe caísse em cima depois de um salto mal calculado. A barmaid fez a pergunta outra vez:
- O que vai beber, cavalheiro?
- Qualquer coisa bem forte. – ela começou a preparar a bebida – Chama cavalheiro a todos os clientes?
- Em princípio. A entoação que lhe dou e o que eu penso quando o digo é que pode variar. A sua bebida.
Serzenko bebeu um gole generoso e depois sentiu a garganta a arder. Quando por fim dominou a tosse e limpou as lágrimas dos olhos, conseguiu fazer com a voz rouca uma pergunta simples:
- O que é isto?!
- Nós por cá chamamos-lhe órbita de colisão. Não gostou?
- Deixe-me pensar por algumas horas na resposta. – ela riu-se.
- Você pediu-me uma bebida bem forte e eu gosto de satisfazer os clientes!
O olhar de Serzenko fazia adivinhar pensamentos mais íntimos e mais lascivos.
- Eu estou livre.
- E eu chamo-me Mary-Ann.

Era um dos defeitos de Serzenko: não conseguia resistir a um rosto bonito mesmo que isso pusesse em perigo uma operação. Mary-Ann era realmente bonita e fora uma noite muito agradável mas agora tinha de concentrar-se no trabalho. Comeu um almoço leve no quarto e passou o resto do tempo a olhar a paisagem imutável que se avistava das janelas e a verificar novamente todo o equipamento. Tinha escolhido uma música calma para ruído de fundo. Colbert tratava dos outros pormenores, ele só tinha de preocupar-se com a rapidez dos seus reflexos. Às treze horas em ponto desceu do quarto e dirigiu-se para a Avenida Gagarin tentando andar normalmente, tarefa difícil na gravidade reduzida.
A figura alta e forte de Colbert, vestido de negro, destacava-se contra o rosa pálido dos mármores de síntese em que a fonte fora construída.
- Bom dia, Colbert.
- Olá Serzenko. Vamos, os nossos patrões arranjaram um modo de nos introduzirmos no clube através das entradas de serviço. – deslocaram-se até um veículo eléctrico de mercadorias – O nosso passaporte!
O Clube Apolo ficava na periferia de Moonkrater, cercado de jardins luxuriantes povoados por pequenos animais inofensivos saídos da imaginação de um mestre geneticista. Era o sítio preferido dos ricos em convalescença das operações plásticas e das transplantações.
- Quem são eles?
- Quem?
- Os que vamos eliminar.
- Um grupo subversivo qualquer, é melhor para nós não conhecermos os pormenores.
Seguiram em silêncio até ao clube. Só quando pararam junto a um edifício baixo e com aspecto de bunker é que Colbert falou:
- Somos fornecedores de bebidas.
- E eles vão acreditar?
- Com as credenciais que nos forneceram de certeza que vão. – Colbert mostrou-lhe uns papéis com aspecto marcadamente oficial – Vamos.

Colbert arrastou o corpo inerte do guarda para um recanto escuro do corredor e ocultou-o com uma mesa alta que sustentava uma jarra com flores artificiais.
Serzenko seguia à frente, atento a todos os ruídos. Uma fracção de segundo antes de acontecer ele viu o homem no corredor lateral. Quando ele apareceu no seu campo de visão a bala partiu antes que ele se apercebesse do que acontecia.
A máscara que usava criava-lhe uma estranha sensação de claustrofobia, era outra das coisas a que nunca se habituaria. Voltou-se com a rapidez de um relâmpago e alvejou o guarda-costas. Ficou estendido no chão, o crânio despedaçado pelo projéctil e a arma agora inútil na mão direita. Tudo o que se ouvira fora o crac abafado do disparo da arma com silenciador.
- E vai mais um! – sussurrou Colbert.
- Por onde seguimos? – indagou Serzenko. Colbert olhou para o dispositivo cartográfico que transportava na mão esquerda.
- Sempre em frente até às escadas.
Avançaram rapidamente pelo corredor luxuoso, de paredes forradas de um tecido aveludado cor de vinho, até ao pequeno hall de onde partiam as escadas que levavam ao piso superior. Serzenko desviou-se e o guarda passou-lhe ao lado indo embater na parede para depois ressaltar no chão e encontrar o corrimão da escada no sítio mais inconveniente. Subiu as escadas com precaução enquanto Colbert liquidava o guarda inanimado. Aquele piso era ainda mais luxuoso que o anterior e tudo tinha um aspecto genuíno, nada de imitações de fancaria. A porta larga ao cimo das escadas dizia 107. Colbert apontou para lá da esquina do corredor e Serzenko seguiu na direcção indicada. Deu um salto para lá da esquina e despejou um carregador sobre os estupefactos guarda-costas que vigiavam a entrada da sala 109.
- Haverá mais algum lá dentro?
- Não, a reunião é confidencial.
Colbert colocou a mina sobre o dispositivo da fechadura e afastou-se um pouco.
- Prepara-te. – ouviu-se um rugido muito grave e onde estivera a fechadura havia agora um buraco. O resto da porta dupla mantinha-se intacto. Serzenko abriu-as com um pontapé e entrou na sala a disparar. Escassos segundos depois estavam oito cadáveres na sala 109.
Serzenko olhou-os enojado: eram velhos, talvez mais de cento e cinquenta anos, sustentados por transplantações sucessivas até terem de seu apenas o cérebro, os ossos do crânio e as feições falsamente jovens do rosto.
- A jovem oposição!... – disse Colbert enquanto despoletava uma granada – Vamos embora Serzenko, o nosso trabalho acabou.

Os sinos nunca tocam neste lado do monte (1)

O fim do mundo começou no seu início, costumava dizer. Disse-o muitas vezes, até que um dia se suicidou.
Foi apenas mais um dos meus amigos a tornar-se intocável. Vi-os a todos no dia seguinte, os poucos que restavam, no conversor 323.
O corpo de Sors Iell foi trazido no seu caixão reciclável, vestido de material reciclável, até ao conversor, para ele próprio ser reciclado. Estranha "reencarnação" a que sofríamos: tanto podíamos "reencarnar" num bife sintético como na gola do casaco dum idiota qualquer. Mas voltávamos sempre, separados por mil coisas diferentes.
Magda Sivur tinha as olheiras mais negras do que o habitual. A dose que tomava devia ser maior agora, e cresceria sempre, até o cérebro lhe estoirar. A droga não era uma coisa boa...
- É duro vê-los cair.
Respondi-lhe com um movimento da cabeça.
- Vamos para casa de quem? – inquiriu.
- Do Ernst.
- E cabemos lá?
- Agora, talvez...
O corpo embrulhado no plástico transparente que era o seu caixão ultrapassou finalmente o pequeno pórtico. O tapete rolante continuou com o seu ron-ron de gato cansado por alguns momentos e depois parou. Tinha acabado.
Voltámos as costas ao silêncio e arrastámo-nos para fora do edifício, um grupo enterrado em sobretudos e pensamentos. Onze máquinas desiludidas de tudo.

O batedor particular do Conversor 323 acercou-se de nós com o seu sorriso oficial afixado no rosto.
- Desejam um transporte? Vou chamar um.
Passámos alguns momentos a olhar-nos mutuamente, observando as expressões que tentavam parecer vazias de emoção.
- Já aqui está – disse o batedor. Dirigiu-se para a pesada porta de aço e accionou o mecanismo que a fez rolar para os lados. Depois pegou na longa vara metálica. Tinha uns dois metros de comprimento e estava ligada à rede eléctrica. O funcionário agarrou-a melhor pela parte revestida a plástico e avançou.
A multidão ululante afastou-se, gritando de dor e deixando o caminho aberto até ao transporte. Seguimos em passo rápido para o seu interior. Eu fui o último. Os motores rugiram e o transporte descolou.
O edifício em que Ernst vivia era de construção antiga, por isso a sua pista de aterragem, no topo da construção, era acanhada.
Começara a chover. A mesma chuva gelada e castanha, saturada de sujidade. Ernst morava no 12º piso.
- Sentem-se por aí. Vou fazer algum café.
Fiquei sentado entre a estante e o aparelho de TV, sobre uma pilha de livros que crescia do chão até ao meu traseiro. O espaço era pouco.
Déjane sentara-se junto a mim, ou melhor, abaixo de mim, no chão.
- Há um mês foi o Andra, há três foi a Mirsine, qual será o seguinte, Paul?
Encolhi os ombros, incapaz de lhe responder, mas ela também não esperava uma resposta.
Ernst reapareceu com um tabuleiro pleno de canecas fumegantes. Agradeci-lhe a minha. O líquido era espesso e negro mas não era café. Pelo que sabia, café verdadeiro era coisa que já não existia. Aquilo, quando muito, era uma imitação burlesca de um sucedâneo do café, um filho bastardo de um seu parente afastado.
Filhos era uma das muitas coisas que não tinha. Nem eu, nem qualquer elemento do grupo. Para se ter um filho era necessário que o possível pai e a possível mãe tivessem mapas genéticos perfeitos, e que pelo menos um dos dois tivesse bastante dinheiro. Também não sentia desejo em oferecer um mundo daqueles a um hipotético filho meu.

3.7.04

Cinco Segundos - Capítulo VI: Vidas Lacustres com Fundações de Aço

Ele conhecia aquele marujar suave mas o cérebro recusava-se a associar ideias e a elucidá-lo quanto à sua origem. Só alguns minutos depois a sua mente baralhada encontrou as palavras: ondas! Pequenas ondas batendo contra qualquer coisa, produzindo um murmurar suave que tudo preenchia. Alguns momentos depois sentiu o cheiro, diferente dos odores habituais em Bluebank ou em qualquer outra superpovoada zona. O mar, era o mar que cheirava assim! Biliões de litros de todas as porcarias imagináveis produzidas através do longo e tortuoso caminho que era a existência humana. Um líquido podre que de água teria pouco mais que a recordação de outros dias, num passado azul que se perdera para sempre. Depois apareceram as sombras desfocadas que gradualmente foram ganhando cor e consistência, até se transformarem na paisagem nítida de um quarto desarrumado, pequeno e mergulhado num crepúsculo que se modificava de instante a instante com os reflexos nervosos da água. Os membros entorpecidos foram-se apresentando ao serviço mas pareciam recheados de chumbo e aguardente. A primeira tentativa para se levantar terminou com um gemido de dor no sobrado velho e húmido. O seu cérebro reaprendeu a fazer perguntas: que raio se tinha passado no apartamento de Colbert MacMahoney? Que sítio era aquele onde se encontrava?
A resposta à segunda pergunta surgiu-lhe sob a forma de um longo rugido. Conseguiu arrastar-se até à pequena janela e olhar para o exterior. O animal de metal continuava a rugir, isolado nas águas costeiras, preso ao fundo por milhares de metros de cabo e lastro pesado. A instalação recicladora parecia uma obra de um demente, uma gigantesca aranha com milhares de pernas que eram tubos de metal e centenas de bocas que eram biofornos e outros dispositivos. Se todas as instalações recicladoras, se todos os renovadores de ar e todos os alimentadores e centrais de fusão se avariassem ao mesmo tempo bastariam alguns dias para o mundo deixar de existir. O ar seria veneno puro e a água pura tornar-se-ia memória. Restaria um deserto imenso, global, feito de polibetão envelhecido e velhas carcaças dos animais que tinham sido demasiado estúpidos para conseguirem sobreviver.
Sentia-se enjoado e a cabeça parecia sobrevoar-lhe o tronco, sem a âncora que era o pescoço para a unir ao resto do seu eu.
Aquele lugar era algures na costa leste, se se podia chamar costa às construções apoiadas na base e nas colunas de metal que invadiam o oceano por várias dezenas de quilómetros. A pouca luz que ali chegava provinha da direcção oposta ao mar, anunciando mais um crepúsculo. Rickert já controlava melhor os seus movimentos, mas continuava sem respostas e com bastante fome. O enjoo dissipara-se rapidamente e fora substituído por uma dor de cabeça.
Os seus sentidos cada vez mais alerta detectaram o ruído proveniente da porta. Alguém mexia na fechadura! A porta abriu-se sem ruído e uma figura magra entrou no quarto.
- Massa Lenta! – exclamou Rickert admirado.
- Ainda não foi desta que morri. – respondeu depois de se libertar do abraço de Rickert.
- O que é que nos aconteceu em Little Dresden?
- Qualquer narcótico em gás que nos enviou para o mundo dos sonhos.
- Não me recordo de ter sonhado. Já sabes onde é que estamos?
- Na pior zona da megalópole lacustre da costa leste: Flatland. – o Massa Lenta tirou qualquer coisa do bolso – Reconheces isto?
Rickert pegou no brinco em forma de cornucópia. Conhecia-o bem, vira-o muitas vezes ornamentando a orelha de Vinnie Smolensk.
- Ela esteve aqui?
- Eu acho que vocês já estiveram aqui.

A iluminação fraca não ajudava muito no labirinto de ruelas de Flatland. Ouvia-se como ruído de fundo um constante ressoar metálico, milhares de pés caminhando pelos pavimentos metálicos das ruelas dos diversos níveis. Rickert e o Massa Lenta progrediam pelo último nível, abaixo deles só as estruturas de apoio e o mar. Caminhavam em silêncio e tentavam passar despercebidos, se é que isso era possível em Flatland.
- Não achas estranho o brinco ainda estar ali, num sítio tão visível? – disse Rickert quebrando o silêncio.
- Estranho sim, mas não impossível. Olha um bar! Vamos comer qualquer coisa?
- Não seria melhor escaparmo-nos daqui?
- Ouve Rickert, não queres saber o que realmente aconteceu? – Rickert concordou com um movimento de cabeça – Nunca estiveste tão perto de o saber como agora, – continuou o Massa Lenta – por isso acho que devemos continuar por aqui. Temos de arranjar armas.
O bar tinha um aspecto miserável, a espelunca de Sakky ao pé daquele era um restaurante de luxo. Pior que o aspecto do bar só o dos clientes. Sentaram-se numa mesa a um canto e pediram guisado e vinho para os dois. O guisado era o menos suspeito dos pratos apresentados.
- Massa Lenta, como vamos pagar se eles nos tiraram tudo?
- Acho que aquele narcótico te fez mal ao cérebro. Donde é que pensas que veio a minha gazua? Eu não coloco tudo nos bolsos, só as coisas menos importantes.
- És um anjo, Massa Lenta.
- Não me gozes...
O guisado não era mau de todo e o vinho conseguia beber-se. Rickert chamou o empregado:
- Precisávamos de comprar umas fisgas, sabe onde podemos consegui-las?
- Depende do que quiserem. Se não for nada de muito sofisticado talvez se possa arranjar.
O Massa Lenta antecipou-se a Rickert.
- Duas Jeggler, dois revólveres e três granadas P2.
O homem ficou parado por uns instantes.
- Dois mil e cem, só aceito dinheiro vivo, nada de cartões. Amanhã...
- Dois mil e duzentos se as entregar já. – interrompeu o Massa Lenta. O taberneiro afastou-se e só voltou passados uns dez minutos com um embrulho feito de jornais sujos nas mãos.
- São mais dez pelas munições.
O Massa Lenta contou o dinheiro e passou-lho para a mão.
- Como é que uma pessoa consegue informações neste sítio?
- Pergunta-me a mim. – o cabelo dela oscilava entre o louro quase branco e os tons de ouro velho, com um período de oscilação muito curto. Sentou-se numa cadeira e serviu-se do vinho pelo copo de Rickert.
- E quem és tu? – indagou Rickert.
Ela bebeu o vinho todo antes de responder.
- Kirl Takashi-Coltrane, mas os meus amigos chamam-me apenas Kay.
Rickert pensou que os traços japoneses dela eram mais que esbatidos para um sobrenome tão evidentemente japonês.
- Soubeste de alguma coisa sobre um homem e uma mulher que para aqui foram trazidos há pouco mais de uma semana?
- Eu sei tudo, Rickert. – só a mão do Massa Lenta no seu ombro impediu Rickert de saltar da cadeira. Olhou em sobressalto para Kirl Takashi-Coltrane.
- Ela sabe tudo, Rickert. – disse o Massa Lenta num tom enfático – Deixa-a falar primeiro.
- Cem unidades e têm a história completa.
- Ouve, minha... – o Massa Lenta acalmou-o mais uma vez e respondeu a Kay.
- Dou-te cinquenta e acho que estás com muita sorte.
- Ok, aceito, mas vamos embora daqui. Andam à vossa procura e mesmo que assim não fosse o bar do Jikx nunca foi muito seguro.

- Estejam à vontade. É pequena e pobre mas está razoavelmente limpa.
Rickert deixou-se cair exausto num velho mapple de tecido coçado. O Massa Lenta sentou-se no chão e começou a montar e a carregar as armas.
- Muito bem Kay, somos todos ouvidos. Começa a falar – ordenou Rickert. Ela sentou-se na beira da cama depois de despir o blusão grosso que usava e começou a contar a história que valia 50 unidades.
- Foi o Emílio que me avisou das coisas estranhas que se passavam na casa ao lado da sua. Há já algum tempo que ele notava actividades fora do normal naquele bloco. Além disso, nunca conseguira saber quem lá habitava. O Emílio é curioso, e numa noite há poucos dias atrás viu quatro tipos chegarem com dois embrulhos muito suspeitos. Por aqui, se se dispuser de um bom vibrosinth consegue ouvir-se o que se passa na casa ao lado. Existe muita interferência, muitas vibrações de fundo, mas sempre se consegue ouvir qualquer coisa. Ele ouviu nomes, lugares e mais algumas coisas: eles fizeram um bonito trabalho nos seus miolos. Emílio ouviu qualquer coisa sobre programação hipnótica e elisão posterior. Sabe o que é isso?
- Eles fizeram com que ele desempenhasse certas tarefas e deixaram programado o seu posterior apagamento. – respondeu o Massa Lenta – Mas esse processo não é irreversível. – disse peremptório para Rickert.
- Eu sei... Por mais algumas unidades posso levá-los a uma pessoa que conheço e que faz trabalhinhos desse tipo. Estão interessados?
- Até agora não nos disseste nada de novo, essa informação não vale 50 unidades. Como é que sabias que o meu nome era Rickert?
- Quando o Emílio me disse que ontem tinham trazido mais dois presuntos resolvi montar guarda à casa suspeita. Segui-vos durante todo o caminho, depois somei dois mais dois.
- Como?
- Bem... confesso que foi Emílio quem me disse o teu nome. Ele esteve à escuta com o vibrosinth.
- Achas que devemos acreditar nela?
O Massa Lenta encolheu os ombros.
- Tanto faz.
- Mais nomes! E lugares, não disseste que esse tal Emílio tinha ouvido referências a lugares? E Vinnie, o que lhe aconteceu?
- Uma coisa de cada vez, patrão! Os nomes Colbert, Ariel e Lucius dizem-lhe alguma coisa? E Arif Kalter? Já foi alguma vez a Willow? E a Moonkrater?
Eram demasiadas coisas.
- Kay, como é que se chama o teu amigo especial?

2.7.04

A Última Iguana (4)

A recordação do quanto tinha andado no interior da mansão tornava plausível a resposta que William Ashton lhe dera: tudo maior, ou mais longo. Olhou para a pequena gaiola de arame onde a iguana se mantinha imóvel. Só os solavancos que o automóvel dava na estrada esburacada a faziam sair do torpor para logo tornar a mergulhar na imobilidade. Um bicho estranho e raro, como aliás todos os animais eram para todas as pessoas daquele tempo: estranhos e raros.
A luz ressequida do sol iluminava o deserto estéril, formado pelas esperanças perdidas de sucessivas gerações de homens. Estava gasto, aquele mundo, e chegaria o dia em que só o vento cruzaria aquelas paragens desoladas. Lasthope ainda era muito longe.
Antes do assalto à mansão de William Ashton fizera o seu trajecto habitual, vendendo quase tudo o que trouxera dos armazéns que já não pertenciam ao velho Murphy. Um cortejo de terreolas sem futuro, vivendo o presente ao ritmo lento de quem sabe que qualquer esforço maior é desnecessário, porque inútil. O único objectivo que todos tinham era viver o mais possível, vendo de ano para ano tudo mais seco e estéril.
Em toda a sua vida só vira chover uma vez: esparsas gotas assustadas, receosas de tocar o chão sedento e logo desaparecer do mundo. Uma única vez em todos aqueles anos...
Os solavancos anormais do carro despertaram-no das suas reflexões. O motor começou a engasgar-se de uma maneira radical até parar. O carro imobilizou-se alguns metros à frente e John Carson-Smith viu tudo invadido pelo silêncio de túmulo do deserto vazio. Aquele automóvel só se avariara uma única vez ao longo de todos aqueles anos e a sua segunda falha tinha logo de ser agora, num momento tão delicado. Saiu para o sol do princípio da tarde e foi ver o motor.
- Merda! Uma mísera bomba de corrosão... – no lugar do motor encontrava-se uma massa amorfa de óxidos vários, lembrança de uma máquina que ainda há poucos minutos funcionava perfeitamente.
"O velho tinha esta carta na manga," pensou, "por isso não se importou muito que eu trouxesse o animal. Ele aqui talvez sobreviva, eu não..."
As bombas de corrosão eram insidiosas, só se detectavam depois de transformar tudo à sua volta num amontoado de óxidos, um monte de ferrugem de tons sombrios que só levemente lembravam o objecto original. O velho réptil enganara John Carson-Smith...
Os víveres que tinha no carro eram suficientes para chegar a Lasthope se fosse de automóvel, indo a pé esgotar-se-iam bem antes do destino. Se conseguisse escapar, quando voltasse à sua cidade não reconheceria quase ninguém, pois certamente já se encontraria fora do seu período de vigília, mas isso era um problema que não o preocupava grandemente.
A ambição perdera-o, e em vez dos milhões que a iguana valia podia ficar apenas com um punhado de areia seca nas mãos inertes de moribundo. Pegou na mochila com a comida, tapou a gaiola com um pano e agarrou nela, disposto a empreender a caminhada imensa. Carregou o chapéu de aba larga mais para baixo e deixou o carro inútil para trás. Alguns minutos depois era apenas um ponto mais escuro na vastidão dourada.

Os dias esgotaram-se céleres e a comida também. Não se alimentava há dois dias e as forças começavam a faltar-lhe. Se tivesse víveres para mais quatro ou cinco dias conseguiria atingir Lasthope, mas assim não chegaria lá. Desembaraçara-se de tudo o que não necessitava e transportava agora apenas a gaiola com a iguana.
O sol do meio-dia castigava-o impiedosamente e ele procurou uma sombra, rara naquela desolação. Acabou por encontrar uma, em instável equilíbrio aos pés de um rochedo. Abrigou-se e à gaiola e bebeu um gole diminuto da pouca água que lhe restava. Tirou o pano que tapava a pequena jaula e olhou para o animal. A iguana parecia gostar do calor sufocante, mas John Carson-Smith sentia-se derreter naquele inferno. Olhou para o céu azul sem nuvens e fechou os olhos, pensando nas festas do falecido Bill Morton e não as achando tão aborrecidas como antes. Daria tudo para estar numa delas naquele momento.

Lasthope surgiu sem aviso, uma mancha escura no seio do deserto, aninhada num pequeno vale. John Carson-Smith acelerou a passada para antecipar o final da longa travessia. Tinha saudades da sua casa simples e não estava nada preocupado com a multa que iria pagar pelo atraso no regresso ao casulo. Era bom estar vivo, mesmo não sendo aquela vida grande coisa.
Olhou para as fachadas sujas dos prédios e depois para a areia que tentava cobrir o tapete de asfalto das ruas. As pessoas olhavam para ele, não era vulgar surgir um desconhecido vindo do deserto pelo seu pé. A propósito de pessoas, John lembrava-se de uma que receberia a sua visita no seu próximo período de vigília, e aí esclareceria todas as coisas obscuras e misteriosas que teimavam em ocupar a sua mente. Tudo maior ou mais longo, dissera ele... Velho ignóbil, que lhe preparara aquela armadilha tão baixa. No fim de tudo ficara como no início, ou mais pobre: perdera um amigo, daqueles que não eram como as serpentes...
O preço da sua sobrevivência fora muito caro, mas fora necessário. O velho William Ashton também tinha dito que a iguana não valia a vida de Bill Morton e John, depois de pensar, chegara à conclusão de que também não valia a dele.
A gaiola ficara vazia à sombra do rochedo, a pequena porta de arame aberta, esperando que o vento persistente do deserto acabasse por cobri-la. Perto dela, já meio enterrados na areia amarela, estavam os ossos da última iguana.

FIM

1.7.04

Cinco Segundos - Capítulo V: Grão a Grão

"O choque do Futuro", chamava-se o filme. Rickert lembrava-se perfeitamente de o ter visto numa sala qualquer de holocinema. Era muito antigo, nem sequer era holográfico. Reproduzia tudo num único plano, o que dificultava a visão a partir de certos pontos das salas circulares de holocinema. Causara-lhe uma profunda impressão, apesar de tudo o que o filme mostrava e previa não se ter concretizado minimamente. Abalara-o a um nível mais profundo, quando compreendera quão ínfimos eram os pontos que representavam a vida de um ser humano na escala infinita do tempo. Momentos perdidos para sempre, na memória destruída de um cadáver, na cinza dos corpos cremados... Momentos com significado para quem os vivera, momentos com significado para todos os homens que a eles tinham assistido... Momentos íntimos, doces, segundos de amor e ternura perdidos definitivamente entre coisas que pouca importância tinham. A visão de uma flor, um instante de felicidade: não eram eles mais importantes que a maior das guerras? Momentos perdidos para sempre no tempo, insignificantes, banais, preciosos...

O vento frio era cortante. Rickert tentou cobrir o rosto com a gola do blusão mas não resultou, o vento passava afiado por todas as frestas e magoava-lhe a cara. Maldito Parsons, pensou, agora nem em casa do Massa Lenta se podiam arriscar a ficar. Ao seu lado o companheiro cabeceou com o sono mais uma vez.
- Quanto tempo ainda, Massa Lenta?
- Hum? Alguns minutos mais, é mais seguro.
Ariel Montezuma não matara ninguém. A vítima fora ele, atravessado pelas balas das armas de Rickert e do Massa Lenta. Haviam-no deixado numa poça de sangue, no centro da sala de estar do apartamento. Uma busca metódica tinha-lhes fornecido algumas débeis pistas que poderiam revelar-se úteis mas que também podiam ser autênticos becos sem saída. Não lhes restava mais nada, porém.
- Vamos, – disse o Massa Lenta – o magnetrain deve estar a chegar.
A estação suburbana de Tinsea estava apinhada como sempre quando o magnetrain se aproximou levitando silencioso alguns milímetros acima do carril supercondutor. Um mar de gente saiu do comboio e um mar de gente tentou tomar o seu lugar. Rickert e o Massa Lenta debatiam-se para obterem um pouco mais de espaço vital na carruagem superlotada.
Nos papéis encontrados no apartamento de Ariel Montezuma havia um bilhete amarrotado com algumas palavras escritas. Dizia apenas: mercadoria entregue amanhã, deitar no lixo assim que possível. Colbert. Rickert estava muito desconfiado de que a mercadoria referida era ele próprio, mas só interrogando aquele tipo o poderiam confirmar. Parsons dera-lhes uma última informação antes de ser sumariamente executado pelo Massa Lenta. Aquele homicídio não pesaria a Rickert no seu currículo.
O nome completo do homem era Colbert MacMahoney e vivia em Little Dresden, uma centena de quilómetros a norte de Bluebank. Aquele comboio passava por lá.

Fora raptado por Lucius Esteban e quatro dias depois fora entregue por Colbert MacMahoney a Ariel Montezuma para ser despejado num beco qualquer. O que se passara nesses quatro dias ainda não o sabia, mas o hiato da memória estava cercado e não podia escapar. Lá fora a paisagem corria veloz, florestas de cimento sujo e depósitos de reciclagem, receptores de energia, mais cimento sujo e todas as coisas já vistas, repetidas uma e outra vez, até a náusea aparecer e os olhos se desviarem para os rostos dos companheiros de viagem.
Havia de tudo ali: prostitutas e pequenos executivos, trabalhadores sem qualificação, desempregados crónicos e ociosos sem razão, ladrões e carteiristas e, possivelmente, grabbers. O perigo residia apenas nesse facto, porque dali não existia possibilidade de fuga.

- Será coincidência ou terá sido avisado?
- Possivelmente soube da morte do Ariel.
- Pois é, Rickert. Já vasculhámos tudo e nada: está tudo muito limpinho e asséptico. Nesta casa tanto podia morar o maior criminoso de toda a região como a mais casta das donzelas.
- Ainda existem essas aberrações? – disse Rickert em tom irónico. O sorriso que ostentava desapareceu quando a sala onde se encontravam pareceu dobrar-se sobre si mesma, uma e outra vez. Rickert sentiu-se dobrado com ela, corpo e alma, até as ideias se tocarem e se estilhaçarem em pedaços pequenos sem significado e o corpo se transformar numa massa amorfa mais própria de um verme.