De Vinnie nada conseguiram saber. Tê-la-iam eliminado? Não parecia a Rickert que Vinnie entrasse nos planos deles, fora antes um percalço que eles tinham resolvido com uma pancada na cabeça e, talvez, com um tiro na nuca.
Rickert mexeu-se inquieto na cadeira do
consultório de Abraham Townsend. Estava preso a ela por diversos cintos e tinha a cabeça cheia de sensores e de sondas não-intrusivas.
- Ok Abe, faz o teu melhor aqui com o meu amigo Rickert.
- Eu faço sempre o meu melhor. – respondeu Abe com uma expressão que deixou dúvidas a Rickert sobre a sua competência – Descontraia-se.
- Isso é bom de dizer. – respondeu-lhe Rickert.
- Primeiro vou tentar recuperar as memórias que foram eliminadas da sua sequência temporal, depois farei uma rememorização para que elas fiquem estáveis. Está preparado? – Rickert encolheu os ombros, resignado. Abe Townsend carregou num botão e Rickert sentiu que caía. Tentou agarrar-se aos braços da cadeira mas estes tinham-se transformado em geléia. Atravessou o soalho gelatinoso e depois todos os níveis de Flatland até ao mar. Sentiu a água suja invadir-lhe os pulmões e depois o sopro quente de rocha aquecida. Só parou no centro do planeta e respirou sofregamente o metal derretido do núcleo.
- Eh Rickert, estás a ouvir-me? – o
Massa Lenta esbofeteou novamente Rickert até que este deixou escapar um gemido – Ainda está vivo! Acorda homem, tens outra viagem para fazer.
Atordoado, voltou lentamente ao mundo dos vivos e balbuciou o pedido que lhe ocupava a mente:
- Alguém me dá água?
- Sente-se bem, Rickert? – perguntou Abe enquanto lhe colocava um copo de plástico nas mãos trémulas.
- Para quem acabou de ser virado do avesso não estou muito mal.
- Muito bem! Então podemos começar com a rememorização. Já se recorda do que se passou nesses dias que tinha esquecido?
- Como um sonho, bastante desconexo aliás. É tudo muito vago...
- A rememorização já vai alterar isso.
Vinnie voltou-se e levou o cobertor com ela. Rickert, meio acordado meio a dormir, tentou puxá-lo e cobrir-se minimamente. Ouviu a campainha tocar: dois toques curtos e um terceiro mais longo.
Voltou-se para o outro lado. Sentia a boca seca e a cama estava anormalmente incómoda. Tacteou à procura do controlo das luzes mas não o encontrou. Como a sede era cada vez maior decidiu levantar-se e ir beber água à casa de banho. Um ruído de fundo metálico entrava-lhe nos ouvidos e incomodava-o. Nunca se habituara completamente à vida em Flatland. Tomou um banho rápido e vestiu-se. Colbert, no dia anterior, informara-o de que teriam uma missão importante para realizar. Não lhe dissera os pormenores, apenas que estava muito dinheiro em jogo. Para quem vivia de homicídios e outros golpes era agradável ouvir isso.
O dinheiro sempre o fascinara. Fora mesmo por ele, pela sua escassez nos seus bolsos, que se tornara assassino profissional. Era uma profissão bem remunerada, embora um tudo nada mais perigosa do que a de caixeiro numa loja de subúrbio.
Abriu a porta da sala onde se costumavam reunir. Já lá estavam Colbert e Ariel Montezuma, um tipo que costumavam utilizar quando era necessário um terceiro homem.
- Bom dia Serzenko, dormiste bem? – disse Colbert com o seu eterno sorriso e uma beata apagada dependurada dos lábios – O Ariel também passou aqui a noite, ontem não estava em condições de conseguir voltar para casa. – riu-se com vontade, no que foi imitado por Ariel. Serzenko apenas conseguiu sorrir-se, os efeitos da ressaca pesavam-lhe ainda muito na cabeça para que achasse graça à bebedeira da noite anterior. O bar do Jikx estivera invulgarmente animado.
- Eu vou andando. Se precisarem de mim sabem onde me procurar. Adeus Serzenko, até à vista.
Serzenko sentou-se e começou a eliminar metodicamente o café que se encontrava na cafeteira plástica à sua frente.
- Pois é, Serzy. Nunca tivemos um contrato tão importante, isto pode ser o início de mais altos voos. – atirou com alguns papéis para a mesa – Bilhetes para Willow. Vamos apanhar o
moonscrapper às cinco da tarde.
- Moonkrater? Então deve ser mesmo importante! Em Moonkrater só há ricos muito ricos e saloios que não encontram melhor maneira de gastar o seu dinheiro a não ser numa viagem à Lua. Quem vamos eliminar? Um rico muito rico ou um saloio? – Colbert não respondeu.
Nunca se havia de habituar à imponderabilidade, não possuía o mínimo resquício de vocação para ser astronauta. Resolveu fechar os olhos e continuar a sugar o café amargo através do tubo alimentar. Sentia a força dos cintos que o seguravam ao assento de cada vez que os retrofoguetes faziam uma correcção à trajectória da nave. Ainda não sabia quem iam eliminar mas isso não era importante, enervava-o mais a perspectiva da alunagem em Moonkrater.
Não fora a voz suave da hospedeira que o acordara mas sim o cotovelo de Colbert.
- Estamos a chegar. – Serzenko abriu os olhos a custo e olhou para o painel informativo à sua frente que indicava como hora provável de alunagem as 9:31 do dia 4 de Setembro, Tempo Padrão Terrestre. Verificou os cintos e guardou nas bolsas tudo o que andava mais ou menos solto. Os efeitos da travagem começavam a fazer-se sentir e daí a minutos entrariam em órbita de alunagem. O monitor mostrava crateras de todos os tamanhos no mesmo cinzento baço que era a cor dominante na Lua.
Os quartos dos hotéis de Moonkrater não eram muito grandes. O espaço era vital num mundo em que ele tinha de ser conquistado ao vazio do espaço. As janelas octogonais de cristal sintético mostravam parte da cidade e mais ao longe a parede da cratera. A viagem do espaçoporto até à cidade fora cansativa, três horas de solavancos minimizados pela suspensão sofisticada do veículo de superfície. Ainda assim Serzenko sentia o corpo dorido. Não se habituara à gravidade reduzida do satélite nem à luz crua que entrava pelas janelas. Colbert entrou e atirou com uma arma de tiro rápido para cima da cama.
- Preparado, Serzenko?
- Quem vai ser contemplado?
- Na sala 109 do Clube Apolo. Todos aqueles que lá estiverem.
- Quantos?
- Provavelmente cinco. Podem ser mais. Amanhã depois do almoço, três horas. Eu vigio, tu executas. O mais difícil vai ser chegar à sala.
- Guarda-costas?
- Bastantes. Encontramo-nos amanhã às 13:30 na Avenida Gagarin, junto à fonte cor-de-rosa. Até lá não nos conhecemos. – saiu do quarto sem mais palavras. Serzenko resolveu tratar das armas antes de ir jantar.
As bailarinas executavam passos de dança que seriam impossíveis na Terra. Os clientes gostavam: velhos ricos cobertos de plásticas mas exalando podridão, prostitutas de serviço, herdeiros milionários e outra fauna de mais difícil identificação. Os criados de mesa que praticamente voavam sobre as cabeças dos clientes causavam-lhe impressão. Desde que entrara no bar que esperava que algum lhe caísse em cima depois de um salto mal calculado. A
barmaid fez a pergunta outra vez:
- O que vai beber, cavalheiro?
- Qualquer coisa bem forte. – ela começou a preparar a bebida – Chama cavalheiro a todos os clientes?
- Em princípio. A entoação que lhe dou e o que eu penso quando o digo é que pode variar. A sua bebida.
Serzenko bebeu um gole generoso e depois sentiu a garganta a arder. Quando por fim dominou a tosse e limpou as lágrimas dos olhos, conseguiu fazer com a voz rouca uma pergunta simples:
- O que é isto?!
- Nós por cá chamamos-lhe
órbita de colisão. Não gostou?
- Deixe-me pensar por algumas horas na resposta. – ela riu-se.
- Você pediu-me uma bebida bem forte e eu gosto de satisfazer os clientes!
O olhar de Serzenko fazia adivinhar pensamentos mais íntimos e mais lascivos.
- Eu estou livre.
- E eu chamo-me Mary-Ann.
Era um dos defeitos de Serzenko: não conseguia resistir a um rosto bonito mesmo que isso pusesse em perigo uma operação. Mary-Ann era realmente bonita e fora uma noite muito agradável mas agora tinha de concentrar-se no trabalho. Comeu um almoço leve no quarto e passou o resto do tempo a olhar a paisagem imutável que se avistava das janelas e a verificar novamente todo o equipamento. Tinha escolhido uma música calma para ruído de fundo. Colbert tratava dos outros pormenores, ele só tinha de preocupar-se com a rapidez dos seus reflexos. Às treze horas em ponto desceu do quarto e dirigiu-se para a Avenida Gagarin tentando andar normalmente, tarefa difícil na gravidade reduzida.
A figura alta e forte de Colbert, vestido de negro, destacava-se contra o rosa pálido dos mármores de síntese em que a fonte fora construída.
- Bom dia, Colbert.
- Olá Serzenko. Vamos, os nossos patrões arranjaram um modo de nos introduzirmos no clube através das entradas de serviço. – deslocaram-se até um veículo eléctrico de mercadorias – O nosso passaporte!
O Clube Apolo ficava na periferia de Moonkrater, cercado de jardins luxuriantes povoados por pequenos animais inofensivos saídos da imaginação de um mestre geneticista. Era o sítio preferido dos ricos em convalescença das operações plásticas e das transplantações.
- Quem são eles?
- Quem?
- Os que vamos eliminar.
- Um grupo subversivo qualquer, é melhor para nós não conhecermos os pormenores.
Seguiram em silêncio até ao clube. Só quando pararam junto a um edifício baixo e com aspecto de
bunker é que Colbert falou:
- Somos fornecedores de bebidas.
- E eles vão acreditar?
- Com as credenciais que nos forneceram de certeza que vão. – Colbert mostrou-lhe uns papéis com aspecto marcadamente oficial – Vamos.
Colbert arrastou o corpo inerte do guarda para um recanto escuro do corredor e ocultou-o com uma mesa alta que sustentava uma jarra com flores artificiais.
Serzenko seguia à frente, atento a todos os ruídos. Uma fracção de segundo antes de acontecer ele
viu o homem no corredor lateral. Quando ele apareceu no seu campo de visão a bala partiu antes que ele se apercebesse do que acontecia.
A máscara que usava criava-lhe uma estranha sensação de claustrofobia, era outra das coisas a que nunca se habituaria. Voltou-se com a rapidez de um relâmpago e alvejou o guarda-costas. Ficou estendido no chão, o crânio despedaçado pelo projéctil e a arma agora inútil na mão direita. Tudo o que se ouvira fora o
crac abafado do disparo da arma com silenciador.
- E vai mais um! – sussurrou Colbert.
- Por onde seguimos? – indagou Serzenko. Colbert olhou para o dispositivo cartográfico que transportava na mão esquerda.
- Sempre em frente até às escadas.
Avançaram rapidamente pelo corredor luxuoso, de paredes forradas de um tecido aveludado cor de vinho, até ao pequeno
hall de onde partiam as escadas que levavam ao piso superior. Serzenko desviou-se e o guarda passou-lhe ao lado indo embater na parede para depois ressaltar no chão e encontrar o corrimão da escada no sítio mais inconveniente. Subiu as escadas com precaução enquanto Colbert liquidava o guarda inanimado. Aquele piso era ainda mais luxuoso que o anterior e tudo tinha um aspecto genuíno, nada de imitações de fancaria. A porta larga ao cimo das escadas dizia 107. Colbert apontou para lá da esquina do corredor e Serzenko seguiu na direcção indicada. Deu um salto para lá da esquina e despejou um carregador sobre os estupefactos guarda-costas que vigiavam a entrada da sala 109.
- Haverá mais algum lá dentro?
- Não, a reunião é confidencial.
Colbert colocou a mina sobre o dispositivo da fechadura e afastou-se um pouco.
- Prepara-te. – ouviu-se um rugido muito grave e onde estivera a fechadura havia agora um buraco. O resto da porta dupla mantinha-se intacto. Serzenko abriu-as com um pontapé e entrou na sala a disparar. Escassos segundos depois estavam oito cadáveres na sala 109.
Serzenko olhou-os enojado: eram velhos, talvez mais de cento e cinquenta anos, sustentados por transplantações sucessivas até terem de seu apenas o cérebro, os ossos do crânio e as feições falsamente jovens do rosto.
- A jovem oposição!... – disse Colbert enquanto despoletava uma granada – Vamos embora Serzenko, o nosso trabalho acabou.